HOMENAGEM À
JACQUES COUSTEAU

José Lutzenberger
Folha de São Paulo, 1997
Publicado logo após seu falecimento

Durante a preparação da Conferência ECO-92, conversei longamente com Cousteau, em Brasília. Raras vezes em minha vida encontrei pessoa tão profundamente preocupada com as calamidades ecológicas que a atual cultura consumista prepara, já para as crianças e jovens de hoje, sem falar das gerações futuras. Preocupava-se com a cegueira da grande maioria e estava revoltado com o imediatismo dos poderosos em governos e tecnocracia. Sua avançada idade não o impedia de engajar-se com força e aceitar sacrifícios pessoais.

Em setembro de 1993 voltamos a nos encontrar, em Stuttgard, na Alemanha. Estávamos participando de um dos eventos mais lindos e comoventes que jamais presenciei. Era uma "Reunião de Cúpula de Crianças". Tinham entre 8 e 14 anos e vinham de toda a Europa, Leste e Oeste. Além de muitos jogos, esportes, canções em todos os idiomas, com o hino lema "Wir sind eine Welt" (Somos um Mundo só), as crianças, todas escolhidas entre as melhores de suas classes, convocavam e questionavam políticos e tecnocratras importantes, deles cobrando o cinismo, as omissões e o descaso ecológico. Era incrível o nível de informação, a perspicácia e o sarcasmo desta infância, mesmo de meninas e garotos de 8 anos.

Lá estava Cousteau entre os assessores convidados pelas crianças, adorado por elas. Ele armou barraca própria para promover a idéia que já lançara em 1992 e que não foi aceita pelos governos que participaram da Conferência. Para complementar a Declarção dos Direitos Humanos, aprovada quase unanimemente em 1948, com abstenção apenas da então União Soviética, da Arábia Saudita e da África do Sul, Cousteau queria uma nova declaração, uma Declaração dos Direitos das Gerações Futuras!

Desde a infância Cousteau fazia parte daquelas pessoas, infelizmente tão raras, que mantém diálogo intensivo com a Natureza. Entrou na Marinha porque gostava do mar, mas não conseguiu satisfazer-se com as atividades meramente militares. Cedo abandonou a carreira para dedicar-se de corpo e alma ao fascínio do mundo marinho.

Foi o primeiro a explorar o mundo submerso e soube mostrá-lo ao grande público. Inventou a máscara, snorkel e pé de pato, desenvolveu o aqualung e câmaras especiais para fotografia subaquática. Com seu filho Philippe, que, tristemente, perdera em acidente aéreo, com seu Catalina, na embocadura do Tejo, em Lisboa, e que foi sepultado em abismo marinho, fez os primeiros grandes filmes que mostravam a profusão de vida nos recifes de corais dos mares tropicais. Estes estão entre os ecossistemas mais belos e preciosos deste castigado planeta vivo - um mundo de estonteante beleza, de colorido deslumbrante, com incrível riqueza de formas, comportamentos e multifacetadas complementações, com diversidade biológica comparável à das florestas tropicais úmidas e igualmente vulneráveis.

Aprofundou sempre mais as suas observações e descidas. Desenvolveu submarinos e equipamentos fotográficos e de TV até para as tremendas pressões das trincheiras abismais, onde se observa em ação os mecanismos da deriva dos continentes com suas erupções submarinas.

Com suas invenções conseguiu montar um império industrial com ramificações em vários continentes. Seus lucros sempre foram reinvestidos em novas observações e pesquisas. Desde a primeira ajuda financeira que lhe foi dada por um empresário britânico, o que lhe possibilitou adquirir o barco Calypso, ele quase sempre conseguiu autofinanciar-se. Sempre viveu modestamente, seu grande gozo era a aventura do mar.

Com o passar dos anos, o que via em toda a parte levou-o a preocupar-se sempre mais com os estragos ecológicos. Chegou mesmo a arrepender-se de sua própria contribuição indireta a alguns destes estragos. Com a popularização dos equipamentos de mergulho surgiram no mundo milhões de caçadores submarinos. É triste ver como a maioria dos que mergulham só pensam em tirar troféu. Pessoalmente, fiz mergulho e fotografia debaixo d'água durante década e meia, quando vivia no Caribe. Nunca empunhei harpão, mas não me faltou vontade de fazê-lo, não contra as inocentes e encantadoras criaturas do coral, mas contra os caçadores que espetavam tudo o que viam pela frente.

Mas Cousteau chegou a preocupar-se com a globalidade dos estragos que hoje cometemos na água, na terra e no ar, chegou à visão holística de nosso Planeta como sistema vivo, com sua bio-geo-fisiologia. Tornou-se um dos mais poderosos ambientalistas. Foi com este intento que fez sua famosa expedição à Amazônia. A expedição suscitou inicialmente protestos de alguns que suspeitavam fins escusos. São muito comuns, especialmente entre políticos, as pessoas que não conseguem entender que alguém possa agir de maneira desinteressada, simplesmente por idealismo.

Num mundo em que já não se encontra praia limpa nem na mais remota das ilhas, onde recifes inteiros de corais estão hoje mortos, outros morrendo pela poluição, onde os que não estão sendo avariados pela contaminação, estão sendo vandalizados para a obtenção de souvenirs para turistas, ou em que as espécies mais raras e peculiares são caçadas vivas para aquaristas, num mundo assim, em que nem o Pico do Everest escapa do lixo, em que até os oceanos árticos têm sua fauna dizimada pela pesca brutal e sem controle, é lógico que Cousteau tenha sofrido grande angústia e desespero, o que demonstrava claramente em suas conversas e publicações.

Ele refletia muito profundamente sobre quais as verdadeiras causas de nossa atual agressividade e poder destruidor diante da Natureza. A campanha de assinaturas por uma Declaração dos Direitos das Gerações Futuras era apenas parte de seus esforços. Com os ecólogos de pensamento mais profundo compartilhava a convicção de que nosso atual desastre é de fundo filosófico-religioso. Dava-se conta que a atual forma de sociedade industrial é uma religião fanática, que no mundo vê apenas um repositório infinito de recursos, de matérias-primas e de espaços a serem conquistados, de sistemas vivos a serem dominados, demolidos ou eliminados. Esta religião precisa ser trocada, e muito rapidamente, por outra, por uma nova, na realidade muito velha, visão holística. Por uma atitude de veneração pelo grande processo da Sinfonia da Evolução Orgânica, da qual somos apenas parte, um processo estupendo que transformou nosso Planeta no maravilhoso sistema vivo que é, em contraste total com os demais planetas de nosso sistema solar, todos mortos.

Se a Humanidade conseguir atingir um desenvolvimento sustentável, se conseguir sobreviver o próximo século, reestabelecendo harmonia com a Criação, Cousteau será venerado como um dos grandes profetas que prepararam a transição.

 

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