SILVIO
VIEIRA
SEXTA-FEIRA, 17 DE MAIO DE 2002
José Lutzenberger
Fala sobre a troca de valores que a
nossa sociedade vive nos dias de hoje. O Prof. Lutzenberg,dedicou boa parte de
sua vida e inteligência na construção de uma vidamelhor não só para ele mas
para todos nós. Neste texto, que é um pouco longo, porém curto quando
comparado com o seu conteudo de clareza e objetividade. O absurdo da agricultura
moderna por José Lutzenberger na controvérsia reinante atualmente em torno da
biotecnologia, como vem sendo aplicada à agricultura, existe muita
desinformação resultando em preocupação desnecessária em algumas áreas e
uma muito mais séria falta de preocupação em outras. É preciso olhar o
quadro completo para pode rentender porque e como a produção agrícola é cada
vez mais dominada por corporações gigantes. Nos dias de hoje, o quase total
controle da biotecnologia pelas grandes empresas é apenas a culminação de um
processo que vem crescendo nos últimos 75 anos. Vamos analisar o panorama da
agricultura segundo a perspectiva atual. A agricultura foi inventada entre 10 e
15 mil anos atrás, e nos últimos 2 ou 3 mil anos evoluiu para belas e
sustentáveis culturas camponesas, localmente adaptadas e sustentáveis, em
muitas regiões do mundo, especialmente na Europa, Ásia, México, América
Central, Andes, e em algumas regiões na África. Desde o início da
colonização, agricultores americanos, apesar de muitos desastres, tais como as
tempestades de poeira, também desenvolveram belos sistemas agrícolas, que
estavam se tornando sustentáveis. Muitas dessas culturas ainda estavam intactas
até o final da Segunda Guerra Mundial. As poucas remanescentes estão agora
sendo desestruturadas. A indústria tem conseguido sucessivamente se apropriar
de uma parte crescente das atividades dos agricultores, tomando deles tudo o que
permite a ela a obtenção de lucros seguros e deixando-lhes os riscos - o risco
de má colheita devido a mau tempo e o risco de perder dinheiro devido à
crescente dependência de insumos agrícolas que devem ser adquiridos a preços
crescentes e tendo que vender seu produto a preços cada vez mais baixos. O
argumento convencional em favor dos métodos da agricultura moderna é que eles
constituem a única maneira eficiente de resolver o problema da fome mundial e
da alimentação das massas que ainda estão por vir com a explosão
populacional. Mas isto é uma ilusão. É certo que os métodos agrícolas
tradicionais poderiam ser aperfeiçoados com o conhecimento científico atual de
como as plantas crescem, da estrutura do solo, da química e vida do mesmo, bem
como do metabolismo das plantas e assim por diante. Mas o aperfeiçoamento não
precisa ser direcionado para monoculturas gigantescas, altamente mecanizadas e
com toda a parafernália dos fertilizantes comerciais e venenos sintéticos, com
a produção agrícola sendo transportada pelo mundo todo. A grande monocultura
foi uma invenção do colonialismo. Os poderes coloniais não podiam extrair
muito do campesinato tradicional com suas safras altamente diversificadas, para
a subsistência e direcionadas para os mercados regionais e locais. Eles queriam
grandes quantidades de algodão, açúcar, café, chá, cacau e outros. Isto
conduziu à marginalização de milhões de pessoas e também esteve na raiz do
tráfico de escravos da África para as Américas, uma das maiores calamidades
da história humana. Mas, o problema fundamental com a agricultura moderna é
que ela não é sustentável. Mesmo se fosse tão produtiva quanto é afirmado,
o desastre seria apenas postergado e seria então muito pior. Se quisermos
alimentar as massas crescentes - é claro que deveremos encontrar também
maneiras de controlar nossos números - teremos de desenvolver métodos de
produção agrícola sustentável. Com muito poucas exceções os camponeses
tradicionais desenvolveram métodos sustentáveis. Os agricultores chineses, por
exemplo, por três mil anos obtiveram alta produtividade dos seus solos sem
comprometer a fertilidade. Ao contrário, eles desenvolveram e mantiveram uma
fertilidade máxima do solo. Os agricultores regenerativos modernos estão
aprendendo a se tornar cada vez mais sustentáveis, com colheitas ótimas e
métodos localmente adaptados, enquanto recuperam e mantém a biodiversidade nos
seus cultivares e na paisagem circundante. Vamos chamá-los agricultores
regenerativos, e não biológicos, orgânicos ou alternativos. Quando se trata
de vida, seja bom ou mau, tudo é biológico, é orgânico, mesmo grandes
massacres. Alternativo apenas significa diferente, poderia ser pior. Mas
regenerativo significa regeneração do que tem sido perdido ou destruído. A
agricultura moderna tem se desligado da lógica dos sistemas vivos naturais.
Todos os ecossistemas naturais possuem retroação interna automática que,
desde o começo, tal como quando um novo pedaço de terra estéril, digamos, a
encosta de um vulcão, é conquistado, faz as condições ambientais melhorarem
até que um clímax de atividade biológica máxima e sustentável seja
atingido. Nossos ecossistemas de agricultura moderna fazem exatamente o oposto,
ao impor retroações (agroquímica, agressão mecânica ao solo) que
gradualmente degradam o meio ambiente e empobrecem a biodiversidade.
Infelizmente, a agricultura moderna obtém sucesso exaurindo o solo e
substituindo a fertilidade perdida por nutrientes que vêm de fora.
Fertilizantes comerciais, tais como fosfatos provém de minas que estarão
brevemente esgotadas, as minas de potássio são mais abundantes, mas
nitrogênio, o mais importante elemento na produtividade da agricultura moderna,
embora venha da atmosfera, uma fonte virtualmente inesgotável e para lá acaba
voltando, é obtido pela síntese de amoníaco Haber-Bosch, um processo que
consome enormes quantidades de energia, principalmente energia de combustíveis
fósseis. Mesmo quando é energia proveniente de hidroelétricas, trata-se de
eletricidade que poderia estar economizando combustíveis fósseis em outro
lugar. Todos os outros insumos, tais como os agrotóxicos e a cada vez mais
pesada maquinaria, são também grandes consumidores de energia. Mas a
agricultura, se a olharmos de uma perspectiva holística, ecológica, é um
esquema para colher energia solar via fotossíntese. Enquanto todas as formas de
agricultura tradicional têm um balanço de energia positivo, a agricultura
moderna perverte até mesmo este aspecto fundamental. Em sua maior parte, tem
balanço de energia negativo. Quase todas as suas operações supostamente de
alta produtividade requerem mais energia fóssil nos insumos do que está
contido em seu produto. Para usar uma metáfora adequada, isto tem se tornado
como um poço de petróleo onde o motor que aciona a bomba consome mais
combustível do que ela pode extrair. Este tipo de operação só pode
sobreviver com subsídios... Sustentam que a agricultura moderna é tão
eficiente que apenas em torno de 2% da população pode alimentar o total da
população. Até a virada do século, na Europa, nos Estados Unidos e na
maioria dos países, quase 60% da população trabalhava no campo. No final da
última Guerra Mundial ainda era quase 40%. Atualmente, nos Estados Unidos,
menos de 2% da população trabalha na agricultura. Na maioria dos países
europeus o número está se aproximando aos 2%, visto que ainda continua a
marginalização de agricultores. Agora, quando se afirma que nas economias
modernas somente 2% das pessoas podem alimentar a população total, em
comparação a 60 ou 40% no passado, isto é, ou uma ilusão para os que
acreditam ou uma mentira para os que sabem, baseada numa falsa comparação. No
contexto da economia, como um todo, o antigo campesinato era um sistema de
produção, manipulação e distribuição de alimento que também produzia seus
próprios insumos. A fertilidade do solo era mantida com esterco, rotação de
cultivos, plantas companheiras, adubação verde, composto, cobertura morta e
descanso da terra; as sementes eram selecionadas do melhor de cada safra;
animais de carga e tração supriam a energia; os moinhos usavam vento ou água
como fonte de energia. Tudo era energia solar. A pouca manipulação ou
beneficiamento que os alimentos sofriam era feita na propriedade ou na aldeia,
cujos artesãos também contavam como população rural. O mesmo se aplicava aos
utensílios, arados, enxadas, carretas, etc... A maior parte da produção
agrícola era entregue quase nas mãos do consumidor na feira semanal. Em nossa
língua sobra uma linda relíquia daqueles tempos: segunda, terça,
quarta-feira. Mas o agricultor moderno é apenas uma pequena engrenagem em uma
enorme infraestrutura tecnoburocrática que requer até mesmo legislação
especial e pesados subsídios. Comparado com seus antecessores que faziam quase
tudo que estava relacionado com a produção, processamento e distribuição de
alimentos, ele não é muito mais do que um tratorista e um espalhador de
veneno. Depois da última Guerra Mundial, quando a Alemanha estava totalmente
devastada, é verdade que o Plano Marshall ajudou, mas, mais importante é que
os habitantes das cidades podiam se espalhar pelo campo e fazer "hamstern",
isto é, trocar qualquer coisa de valor, um relógio, um anel, um piano, por
alimento. Os camponeses tinham comida, tinham cereais, feijão, batata,
verduras, frutas, leite, queijo, frango, ganso, e muito mais. Não seria
necessária uma guerra hoje para colocar os agricultores europeus em uma
posição em que eles próprios teriam de fazer "hamstern", mas onde?!
Nenhuma bomba precisa cair. Um simples colapso na energia, no transporte,
especialmente na importação de fertilizantes minerais e ração para gado, no
sistema bancário e mesmo nas redes de computadores e comunicações, seria
suficiente. Espantoso, que os militares não pareçam estar preocupados.
Fundamentalmente, a segurança nacional depende de uma agricultura sadia e
sustentável. O sistema atual de produção e distribuição de alimentos
(incluindo fibras e alguns outros itens não comestíveis) começa nos campos de
petróleo e todos os tipos de minas para metais e outras matérias-primas, passa
pelas refinarias, siderurgias e plantas de alumínio, etc., a indústria
química, a indústria de maquinária, o sistema bancário, o envolvente sistema
de transporte (consumindo principalmente combustíveis fósseis), computadores,
supermercados, indústria de embalagens e um totalmente novo complexo de
indústrias que quase não existiam no passado - a indústria de manipulação
de alimentos que mais mereceria ser chamada de indústria de desnaturação e
contaminação de alimentos (com aditivos e resíduos de agrotóxicos). Se
quisermos comparar o agricultor de hoje com o tradicional, então todas as horas
de trabalho nas indústrias acima mencionados e algumas outras, assim como
alguns serviços, tal como as empresas de "fast food" que, em inglês,
bem merecem o qualificativo de "junk food" (comida entulho), e
distribuição de alimentos, até onde elas direta ou indiretamente contribuem
para a produção, manipulação e distribuição de alimentos, precisam ser
adicionados. Isto tudo deveria até mesmo incluir as horas de trabalho que
correspondem ao dinheiro que, em outras profissões, precisa ser ganho para
pagar os impostos que financiam os subsídios. É significativo que a maior
parte dos subsídios vai, não para o agricultor, mas para o complexo
industrial. O agricultor é sempre mantido à beira da falência. Um balanço
completo deste tipo certamente mostraria que, atualmente, numa economia moderna,
também em torno de quarenta ou mais por cento de todas as horas de trabalho
vão para a produção, manipulação e distribuição da comida. Mas os
economistas convencionais de hoje, aqueles que nossos governantes escutam, em
sua visão não holística, colocam as fábricas de tratores e colheitadeiras
com a indústria de maquinária, as fábricas de fertilizantes químicos e
agrotóxicos com a indústria química e assim por diante, como se não tivessem
nada a ver com alimentos. O que temos, então, com umas poucas exceções, é
redistribuição de tarefas e certas formas de concentração de poder nas
grandes corporações, e não mais eficiência na agricultura. Vamos olhar com
mais detalhe para alguns dos aspectos decisivos: quase sempre o moderno sistema
de produção e distribuição de alimentos, além de não ser mais produtivo em
termos de eficiência de mão de obra, tampouco é mais eficaz em termos de
produtividade por hectare. Em muitos casos, tais como na criação intensiva de
animais, ele é mesmo destrutivo, consumindo mais alimento do que produz. No sul
do Brasil, durante a última metade do século XX a grande floresta subtropical
do Vale do Uruguai foi completamente demolida, deixando apenas algumas pequenas
relíquias. A floresta foi derrubada e queimada com a quase total destruição
da madeira, para abrir espaço para a monocultura de soja. Isto não foi feito
para aliviar o problema da fome nas regiões pobres do Brasil, mas para
enriquecer uma minoria (pessoas sem tradição agrícola) com a exportação
para o Mercado Comum Europeu para alimentar gado. As plantações de soja estão
entre as mais modernas - grandes, altamente mecanizadas e com os habituais
insumos químicos. Essas plantações não são, de maneira alguma, atrasadas
quando comparadas ao mesmo tipo de plantação nos USA. No nosso clima
subtropical o agricultor tem a vantagem suplementar de poder plantar trigo,
cevada, centeio ou aveia, mas também de fazer feno e silagem no inverno sobre o
mesmo solo, mas poucas vezes o faz. Comparado ao que os nossos colonos faziam em
solos similares, a produtividade é baixa, raramente mais do que três toneladas
de grãos (total, verão e inverno) por hectare. O camponês, que produzia para
alimentar a população local, facilmente produzia 15 toneladas de comida por
hectare, diversificando com mandioca, batata-doce, batata inglesa,
cana-de-açúcar e grãos, mais verduras, uva e todos os tipos de frutas, feno e
silagem para o gado, além de porcos e galinhas. Mas ele não produzia PIB
(produto interno bruto). O PIB só reflete fluxo de dinheiro, não leva em conta
autosuficiência e mercadeio local. A conta do PIB interessa o banqueiro, o
governo, as grandes corporações transnacionais, nada tem a ver com o bem estar
das pessoas, da população. Quando estatísticas das Nações Unidas declaram
que quase a metade da população mundial vive com menos de dois dólares por
dia, isso leva a falsas conclusões. Ninguém viveria com dois dólares por dia
se tivesse que comprar sua comida, roupa, utensílios no supermercado ou
Shopping Center. No período áureo de nossa colonia no Rio Grande do Sul, anos
trinta, o colono podia não ter um tostão no bolso, mas sempre tinha mesa
farta, vivia muito bem. Não obstante esta realidade, a política agrícola
oficial tem sempre apoiado os grandes às custas dos camponeses. Centenas de
milhares deles tiveram que desistir e partir para as cidades, freqüentemente
para as favelas, ou mais para o norte em direção à floresta Amazônica. Uma
devastação tremenda foi feita com dinheiro do Banco Mundial no estado de
Rondônia, e os pequenos agricultores que lá foram assentados, não sabendo
como cultivar nos trópicos e sem apoio, em geral fracassam, deixando para trás
devastação, enquanto novas áreas da floresta são desmatadas. No Brasil
central, o cerrado, o equivalente sul americano da savana africana, está hoje
sendo quase totalmente destruído para dar lugar a mais plantações de soja,
uma das quais cobrindo centenas de milhares de hectares contíguos. Na sua
biodiversidade o cerrado é tão valioso quanto a floresta tropical, e
eventualmente, até mais. Num exemplo concreto também se argumenta que os
índios camponeses em Chiapas, México, que estão agora lutando pela sua
sobrevivência, rebelando-se contra o NAFTA (o Mercado Comum Norte Americano),
são atrasados, eles produzem somente duas toneladas de milho por hectare
comparado com seis nas plantações mexicanas modernas. Mas isso é somente
parte do quadro, as plantações modernas produzem seis toneladas por hectare e
é só. Mas os índios produzem uma colheita mista, entre seus pés de milho,
que também servem para suporte de variedades de feijão que são trepadeiras,
eles plantam legumes, abóbora, morangas,batata doce, batata inglesa,tomate e
todo tipo de vegetais, frutas e ervas medicinais. A partir do mesmo hectare eles
também alimentam seu gado e galinhas. Eles facilmente produzem quinze toneladas
de alimento por hectare e tudo sem fertilizantes comerciais ou pesticidas e sem
assistência dos bancos, governos ou corporações transnacionais. A
marginalização de tais pessoas é a continuação de um dos maiores desastres
dos tempos modernos. Ao chegar nas favelas das cidades terão de comprar comida
cultivada em monoculturas que são menos produtivas do que eram eles. Em última
análise existe então menos comida e mais pessoas para alimentar. Existe
excesso em alguns lugares e falta noutros. Freqüentemente sua terra é então
tomada por criadores de gado que raramente produzem mais do que 50 quilos de
carne/hectare/ano. Centenas de histórias similares poderiam ser contadas. No
caso de Chiapas, cada vale tinha sua língua e cultura diferentes. Acima de
todas as calamidades pessoais, quando a terra perde seus camponeses, temos
genocídio cultural! No caso da criação em massa de animais para carne e ovos,
os métodos são absolutamente destrutivos, muito mais alimento para humanos é
destruído do que produzido. As galinhas em seus tristes campos de
concentração ou fábricas de ovos, eufemisticamente chamadas de
"granjas" são alimentadas com rações "cientificamente
equilibradas", consistindo de grãos de cereais, soja, torta de óleo de
palma ou de mandioca, muitas vezes com farinha de peixe. Conhecemos casos no
Brasil onde sua ração contém leite em pó, proveniente do Mercado Comum
Europeu... Isto as coloca então numa posição de competição com os humanos,
nós as alimentamos com nossas lavouras. Um absurdo total se o propósito é
contribuir para resolver o problema da fome mundial. Na agricultura tradicional
as galinhas comiam insetos, minhocas, esterco, ervas, capim e restos de cozinha
e de colheita, desta maneira aumentando a capacidade de sustento das terras dos
agricultores para humanos. Agora elas a diminuem. Nestes esquemas, a razão de
transformação da ração em alimento humano é próxima de vinte para um.
Precisa-se levar em consideração que metade do peso dos animais vivos - penas,
ossos, intestinos - não é consumida por nós e também é preciso considerar
que as rações desidratadas e concentradas com um alto consumo de energia até
o máximo de 12% de água, enquanto a carne contém até 80%. Nos galpões de
engorde, as operações mais eficientes usam em torno de 2,2Kg de ração para
obter 1Kg de peso vivo, metade da qual é alimento humano. Então 2,2 para 1 se
torna 4,4 para 1. Corrigindo o conteúdo de água: 4,4 vezes 0,88 e 1 vezes 0,2
obtém-se 3,87 para 0,2, igual a 19,36 para 1. Quando se trata de gado bovino
confinado, como nos "feed lots" de Chicago, a relação é umas cinco
vezes pior. Mais recentemente, algumas de nossas granjas
"aperfeiçoaram" um pouco esta razão incluindo na ração rejeitos de
galinhas abatidas antes, desta maneira forçando-as ao canibalismo(!). Outro
aspecto absurdo disto tudo: as rações "cientificamente equilibradas"
não contém nada verde, o mesmo acontece com os porcos. Mas galinhas e porcos
são vorazes consumidores de ervas, gramíneas, frutos, nozes e raízes. Em
nossos experimentos com agricultura sustentável na Fundação Gaia também os
alimentamos com plantas aquáticas, com grande sucesso - animais saudáveis, sem
antibióticos, sem drogas, sem veterinários. Além disso, nos campos de
concentração de galinhas e fábricas de ovos, assim como nos modernos
calabouços de porcos, as pobres criaturas vivem sob condições de extremo
estresse. É tempo de acabar com a mentira de que apenas a agricultura promovida
pela tecnocracia pode salvar a humanidade da inanição. O oposto é verdadeiro.
É preciso uma nova forma de balanço econômico que, a medida que soma o que é
chamado "produtividade" ou "progresso" na agricultura,
também deduza todos os custos: as calamidades humanas, a devastação
ambiental, a perda da diversidade biológica na paisagem circundante e a ainda
mais tremenda perda de biodiversidade em nossos cultivares. Este segundo aspecto
será agora enormemente agravado com a biotecnologia dominada pelas grandes
empresas, como veremos mais adiante. E, mais importante e decisivo, a não
sustentabilidade disto tudo. Temos o direito de agir como se fóssemos a última
geração? No caso de operações industriais envolvendo galinhas é fácil ver
como tais métodos destrutivos se desenvolveram. Estou falando do que observo no
sul do Brasil - o Brasil é um grande exportador de carne de galinha,
principalmente para o Oriente Médio e Japão. A partir de esquemas muito
simples, onde pequenos empresários individuais confinavam galinhas num galpão
e as alimentavam com milho, o sistema coalesceu e cresceu até um ponto onde,
atualmente, existem em torno de meia dúzia de companhias muito grandes e umas
poucas pequenas. Os grandes abatedouros abatem e processam até centenas de
milhares de galinhas por dia. Eles operam de acordo com regras impostas por
eles, chamadas por eles "integração vertical". O
"produtor" assina um contrato onde aceita comprar todos os seus
insumos, pintinhos, ração e drogas da companhia. Mesmo que ele seja um
agricultor e tenha uma grande produção de grãos, ele está proibido de
usá-la para alimentar suas galinhas. Ele é obrigado a comprar a ração
pronta, mas pode vender o seu milho para a fábrica de ração que pertence à
mesma companhia proprietária do abatedouro e da incubadeira que produz os
pintos. Estes operam um tipo diferente de campo de concentração de galinhas
onde os prisioneiros são galos e poedeiras, um galo para cada dez galinhas. As
galinhas não estão em pequenas gaiolas como nas fábricas de ovos, elas podem
se mover livremente dentro do galpão e pular para dentro de amplos ninhos para
pôr os ovos. Nas operações de esteiras rolantes das fábricas de ovos,
chamadas baterias, as pobres poedeiras estão confinadas, três em cada gaiola,
sobre uma grade de arame e os ovos rolam para fora. Os pintos produzidos nestas
incubadeiras não são mais de raças tradicionais de galinhas, eles são de
marcas registradas e são híbridos. Assim como o milho híbrido, não podem ser
reproduzidos com manutenção de características raciais. Após comprar todos
os seus insumos da companhia com a qual assinou contrato, ele poderá vender
somente para a mesma. O produtor não é autorizado a vender a empresas
concorrentes, estas não comprariam. Assim, ele pode ter a ilusão de ser um
pequeno empresário autônomo, mas sua situação real é a de um operário com
horas de trabalho ilimitadas, sem fins-de-semana, feriados nem férias e ainda
tem que pagar sua própria previdência social. Se a grande companhia
trabalhasse com empregados de carteira assinada, ela não poderia fazê-lo,
seria muito caro e muito arriscado. Desta maneira deixam todos os riscos com o
produtor: perda por doenças ou custos adicionais com drogas e antibióticos,
choque de calor, um desastre comum durante os dias quentes de verão, quando
centenas ou milhares de galinhas morrem nos abarrotados e mal ventilados
galpões, e perdas durante o transporte. As galinhas que morrem nos caminhões
da companhia no trajeto ao abatedouro são também descontadas. Os seus lucros
também diminuem constantemente com o crescente preço dos insumos e a queda do
faturamento com as vendas. A margem do produtor é tão apertada que, mesmo se
tudo for bem, mas se for preciso alimentar os animais mais alguns dias, o lucro
pode evaporar ou mesmo se transformar em perda. Esta é uma ocorrência comum. O
abatedouro agenda suas viagens de coletas de galinhas prontas de acordo com sua
própria conveniência. Mas se a companhia obtém lucros excepcionais no mercado
de exportação, nada vai para o produtor...? Portanto, os campos de
concentração de galinhas não têm nada a ver com maior produtividade para
ajudar a salvar a Humanidade da inanição - de fato, eles contribuem ao
problema - mas eles concentram capital e poder pela criação de dependência.
Estes métodos não foram inventados pelos agricultores. É impensável que um
agricultor em uma cultura camponesa sadia tivesse a idéia de alimentar
massissamente suas galinhas com grãos, a menos que fossem grãos estragados, e
isolá-las de sua fonte natural de alimentos, desta maneira desperdiçando parte
da capacidade de sustentação do solo para humanos, destruíndo ao mesmo tempo
parte de sua colheita. Estes métodos também não são resultado concatenado de
uma conspiração pela tecnocracia. Tais esquemas crescem naturalmente a partir
de uma "semente" inicial que pode ter tido uma intenção
completamente diferente. Neste caso, como foi na agroquímica também, era o
esforço de guerra. A conspiração cresceu depois ao longo do tempo. Durante a
última Guerra Mundial, o governo americano iniciou osistema de subsídios para
a produção de grãos, o qual conduziu a enormes excedentes. Assim, as
autoridades da agricultura procuraram "consumo não humano" para os
grãos... Integração vertical" é somente um estágio momentâneo no
processo de concentração de poder. Em breve eles encontrarão maneiras de
banir - por meio de legislação especial - a criação de galinhas soltas
(caipiras) por agricultores independentes. Já foi tentado, sem sucesso, mas,
por dispositivos legais especiais, conseguiu-se tornar muito difícil para
pequenos agricultores a venda de ovos no mercado aberto. No caso do milho
híbrido, também não existia conspiração no início, ela veio mais tarde.
Geneticistas descobriram que pelo cruzamento de duas variedades super-puras de
milho - variedades obtidas após oito a dez gerações de autofecundação - se
obtém plantas de alta produtividade e uniformidade perfeita. Deve ter sido uma
decepção quando descobriram que as variedades não eram estáveis. Após
ressemeadura, as variedades dessegregam de acordo com as leis de Mendel. A nova
colheita era caótica - pés de milho pequenos e grandes, uma espiga, muitas
espigas, cores, formas e qualidades de grãos diferentes. Mas, do ponto de vista
do vendedor de sementes, era uma verdadeira vantagem! O agricultor não mais
poderia guardar sua própria semente, tinha que comprar sementes novas a cada
ano. O vendedor não precisava sequer da proteção de uma patente. Felizmente
na maioria dos cultivos, especialmente grãos como trigo, cevada, centeio e
aveia, este tipo de hibridização ainda não é economicamente viável para os
geneticistas. Eles estão tentando com todas as culturas que podem. Funciona com
galinhas. No sul do Brasil foi necessário fundar uma associação com o
objetivo de preservar as raças tradicionais de galinhas. A maioria estão agora
em perigo de extinção. Algumas já se foram. Somente as cepas registradas de
galinhas híbridas não estão ameaçadas (enquanto durar a loucura dos campos
de concentração de galinhas e fábricas de ovos). Quanto ao milho, quase todas
as variedades tradicionais se foram. Se um agricultor quer plantar uma delas
não ganha o crédito do banco. Apenas as variedade "registradas" são
aceitas. Atualmente, a manipulação genética direta, chamada biotecnologia,
que opera a nível de cromossomo, permite que o especialista assuma o controle,
tirando o do agricultor. Mas, como a maioria dos produtos resultado da
manipulação genética direta não dessegregam na reprodução, como no caso
dos híbridos naturais, é preciso patentes. Retornaremos a este assunto.
Vejamos como nasceu a agroquímica Até final dos anos quarenta a pesquisa em
agricultura visava soluções biológicas. A perspectiva era ecológica, embora
mal se falasse em ecologia. Se esta tendência tivesse podido continuar,
teríamos hoje muitas formas de agricultura sustentável, localmente adaptadas e
altamente produtivas. Começando nos anos cinqüenta a indústria conseguiu
fixar um novo paradigma - nas escolas, na extensão e pesquisa agrícolas. Vamos
chamá-lo paradigma NPK + V. NPK corresponde a Nitrogênio, Fósforo, Potássio,
o V significa veneno. Os fertilizantes comerciais se tornaram um grande negócio
depois da primeira guerra mundial. Logo no começo da guerra, o bloqueio Aliado
cortou o acesso dos alemães ao salitre chileno, essencial para a produção
deexplosivos. O processo Haber Bosch para fixação de nitrogênio a partir do
ar, mencionado acima, era conhecido mas ainda não tinha sido explorado
comercialmente. Os alemães montaram então uma enorme capacidade de produção
e conseguiram lutar por quatro anos. O que seria o mundo se este processo não
tivesse sido conhecido? A primeira guerra mundial não teria realmente se
desencadeado, não teria acontecido o Tratado de Versalhes, e portanto não
teria havido Hitler...! Como uma tecnologia pode mudar o curso da história!
Quando a guerra acabou, havia enormes estoques e capacidade de produção mas
não havia mais grande mercado para explosivos. A indústria então decidiu
empurrar fertilizantes nitrogenados para a agricultura. Até então os
agricultores estavam bastante satisfeitos com seus métodos orgânicos de
manutenção e aumento da fertilidade do solo. O guano e o salitre chileno eram
usados de maneira muito limitada, principalmente em cultivos muito especiais,
especialmente em jardinagem intensiva. Os fertilizantes nitrogenados na forma de
sais quase puros e concentrados, fertilizantes à base de nitrato e amônia, de
certa forma viciam, quanto mais se usa mais se precisa usar. Logo se tornaram um
grande negócio. Então a indústria desenvolveu um espectro completo, incluindo
fósforo, potássio, cálcio, microelementos, mesmo sob a forma de sais
complexos, aplicados na forma granulada, algumas vezes de avião. A Segunda
Guerra Mundial deu um grande empurrão para uma pequena e quase insignificante
indústria de pesticidas e realmente a projetou para a produção em grande
escala. Hoje o equivalente a centenas de bilhões de dólares em venenos são
espalhados sobre todo o planeta. Durante a Primeira Guerra Mundial gás venenoso
foi usado apenas uma vez, com efeitos devastadores para ambos os lados, e por
isso nunca mais foram empregados. Durante a Segunda Guerra Mundial gases não
foram aplicados em batalha, mas muitas pesquisas foram desenvolvidas. Bayer,
entre outros, estava neste jogo. Ela desenvolveu os ésteres do ácido
fosfórico. Depois da guerra eles tiveram uma grande capacidade de produção e
estoques e concluíram que o que mata gente também mata os insetos. Fizeram
novas fórmulas e as comercializaram como inseticida. O DDT era conhecido como
uma curiosidade de laboratório. Quando Müller, na Geigy, descobriu que matava
insetos sem, aparentemente, afetar as pessoas, alertou as forças armadas
americanas que estavam sofrendo com a malária no Pacífico, enquanto lutavam
com os japoneses. Usaram-no de forma totalmente descuidada, convencidos de que
era inofensivo, espalhando-o sobre paisagensinteiras e até dentro de casas e
sob a vestimenta das pessoas. Pouco antes do fim da Guerra no Pacífico um
cargueiro americano estava a caminho de Manila com uma carga de potentes
fitocidas (biocidas que matam plantas) do grupo 2,4-D e 2,4,5-T. A intenção
era matar de fome os japoneses destruindo suas colheitas através da
pulverização do veneno desde o ar. Tarde demais. O barco teve ordem de voltar
antes de chegar. Outro grupo de americanos acabara de jogar as bombas atômicas
sobre Hiroshima e Nagasaki, uma terrível história que todos nós conhecemos, e
os japoneses assinaram o armistício. Mesma história: grande capacidade de
produção, enormes estoques sem compradores. A substância foi reformulada como
"herbicida" e descarregada nos agricultores. Depois, durante a guerra
do Vietnam, as Forças Armadas Americanas impiedosamente espalharam o que eles
chamaram de "Agente Laranja" (e outras cores) sobre milhões de
hectares de floresta tropical, pretendendo fosse somente um desfoliante para
tornar visíveis as forças inimigas. De fato, estas formulações continham
grandes concentrações de 2,4,5-T que destruiam totalmente as florestas. A
indústria, querendo preservar em tempo de paz o que tinha sido um grande
negócio em tempo de guerra, conseguiu dominar quase completamente a pesquisa
agrícola para redirecioná-la para seus próprios objetivos. Conseguiu cooptar
a pesquisa e extensão agrícola oficial, assim como escolas e, fazendo
"lobby" a favor de legislação ou regulamentação adequadas e
criando esquemas bancários de crédito (aparentemente) fácil, colocaram o
agricultor numa posição na qual dificilmente sobravam outras alternativas.
Atualmente, o paradigma agroquímico é aceito quase sem questionamentos nas
escolas agrícolas, na pesquisa e extensão. A maioria dos agricultores acredita
nele e, freqüentemente, quando marginalizada, se culpa a si mesma por sua
incapacidade para competir. Tudo isso veio a existir não como uma conspiração
deliberada por pessoas de mentes diabólicas, desenvolveu-se e estruturou-se de
oportunismo em oportunismo. A medida que uma nova técnica, processo ou
regulamentação dava vantagem à alguém ou à alguma instituição, a
respectiva tecnologia era promovida e ideologicamente consolidada. Alternativas
que não encaixavam com as crescentes estruturas de poder eram combatidas,
ignoradas ou desmoralizadas. Agora sim, no caso da biotecnologia na agricultura,
controlada por grandes corporações transnacionais, parece que temos uma
verdadeira conspiração e que os danos serão muito mais irreversíveis do que
os sofridos até agora. O principal problema aqui não é tanto se nossos
alimentos se tornarão de qualidade inferior e até nocivos - apesar de que isso
possa vir a ocorrer - mas, novamente, trata-se de adicionar ainda mais
estruturas de dependência, de dominação, sobre os agricultores que ainda
restam e uma limitação de escolhas para o consumidor. A fantástica
diversidade de cultivares que tínhamos e ainda temos hoje, depois das tremendas
perdas causadas pela "Revolução Verde" durante as últimas décadas,
é o resultado da seleção, consciente e inconsciente, por parte dos camponeses
ao longo dos séculos e dos milênios. Pensemos somente na família das
crucíferas - repolho, couve chinesa, rabanete, nabo, mostarda, couve-flor,
brócoli, colsa e muitos outros. Nenhum destes agricultores jamais solicitou
patentes, registro ou certificação... Agora, indústrias como a Monsanto
querem que aceitemos sua manipulação desta riqueza preexistente, como a soja
"Roundup-ready", com o argumento de que eles apenas estão dando
prosseguimento e acelerando este processo, contribuindo assim para a solução
dos problemas para alimentar a Humanidade. Eles insistem mesmo de que não há
outra saída. Mas eles sabem muito bem que existem outras alternativas,
melhores, mais saudáveis, mais baratas. Todo mundo sabe que a agricultura deve
encontrar caminhos para se afastar dos venenos. Possuímos todos os
conhecimentos necessários. Milhares de agricultores orgânicos em todo o mundo
são prova disto. Com cultivares resistentes a herbicidas a indústria quer
vender pacotes, semente + herbicida, obrigando o agricultor a usar herbicida,
mesmo que ele não o necessite, e a usar o herbicida da respectiva empresa. No
caso de cultivares com o infame gen "terminator" a conspiração é
ainda mais óbvia. Com esse tipo de semente eles nem precisam se incomodar em
solicitar patentes. Tudo isto não tem nada a ver com aumento de produtividade,
é a culminação do gradativo processo de desapropriação dos agricultores,
para transformar os sobreviventes em meros apêndices da indústria. Isto
agravará a marginalização, a desestruturação social, a devastação
ambiental e a perda da biodiversidade na Natureza e em nossos cultivos,
agravará o problema da fome. José A. Lutzenberger, Porto Alegre 2002. Brasil,
setembro de 2001.
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