JOSÉ LUTZENBERGER
 ENTREVISTA
REVISTA EXPRESSÃO

24 de Outubro de 1995

1) Muitos afirmam que o Sr. foi um radical da causa ambientalista e que agora não é mais. Gostaria que o Sr. se definisse dentro desse contexto. Basicamente, o que mudou no seu pensamento em relação ao meio-ambiente/produção.

Em primeiro lugar, acho que quem nunca mudou de opinião ou de atitudes não pode ser muito inteligente, não tem capacidade de aprender.

O Movimento Ambiental já passou por várias fases. A primeira, na década dos anos 60, foi a fase da descoberta dos problemas ambientais. Os anos 70 foram a fase do confronto, das grandes brigas. Nos anos 80 tecnocracia e governo começaram a reagir, surgiram os órgãos oficiais de controle ambiental. Muitas indústrias começaram, não somente a agir para controlar ou corrigir seus problemas ambientais, algumas, uma pequena minoria, começaram a efetivamente desenvolver consciência, não propriamente ecológica, mas ambiental e a sentirem-se responsáveis. Agora, após a RIO-92, toda pessoa inteligente, bem informada e pensante sabe que nossa atual Cultura Industrialista Global é insustentável e que, se quisermos sobreviver como espécie e como civilização, teremos que repensar o que entendemos por "progresso" e por "desenvolvimento". Infelizmente, entre os poderosos há muito cinismo. Já conversei com grandes "capitães de indústria" que, reconhecendo este fato, dizem : "prá mim inda dá."

Pessoalmente, participei e continuo presente nas quatro fases, com concentração na terceira e na quarta, não temo o confronto e nele mergulho com força onde ainda for necessário, o que se torna cada vez mais raro.

Dentro do esquema em que hoje vivemos, é enorme a demanda de soluções. Nisto, a maioria dos que agora se dizem ambientalistas não tem condições, não tem horizonte em ciências naturais, são analfabetos em tecnologia, de modo a não ter condições de ver os aspectos éticos e políticos da tecnologia - muitos simplesmente confundem ciência e tecnologia - e não tem profundeza filosófica. Por isso, mesmo confrontados com uma problemática ambiental que grita por solução e onde a solução está à vista, é barata e simples, continuam brigando com os que clamam por ajuda e deixam o campo aberto àqueles que querem vender soluções tecnocráticas, sofisticadas e caras, soluções que, em geral, são socialmente indesejáveis, propiciam o capital, isto é, o poder, não a pessoa, e que são ecologicamente insatisfatórias.

No que concerne uma crítica do nosso atual modo de vida, muito pouco nos vem do movimento ambiental. Isto é o que mais me preocupa e no que mais profundamente me empenho.

Aqueles que me criticam, quase sempre me conhecem em apenas uma destas quatro fases que, por sinal , cada uma tem sua linguagem própria. Extrapolam, então, e pensam que sou unilateral. Como só me enxergam no nível em que se encontram, no confronto, pensam que estou reduzido, quando me sinto, isto sim, ampliado.

2) É possível conciliar interesses econômicos com ambientais? Qual é o melhor caminho?
É claro que seria possível conciliar "interesses econômicos" com ambientais, desde que a definição de "interesses econômicos" fosse outra. O pensamento econômico predominante , este que norteia todos os governos, quase sem exceção, acha que tudo deve submeter-se a ele, que ecologia é externalidade da economia. Mas, os negócios humanos são apenas parte dos negócios da natureza, portanto, a economia deveria ser vista como parte da ecologia. Enquanto isto não acontecer, não há condições de conciliação. O que podemos e devemos fazer no caminho até lá é contribuir para mitigar os desastres que se aproximam.

3) O Sr. acredita que os empresários têm consciência ecológica ou acha que suas ações em prol do meio-ambiente são meramente ações de marketing? O que mudou de fato na cabeça dos empresários?

Não tem sentido falar de "os empresários", eles são muitas dúzias de milhões no mundo e ainda não encontrei dois iguais. Há os que se encontram nos mais baixos dos níveis de rapina imediatista e há os que têm sensibilidade ética holística, de visão cósmica. Nestes últimos dias, no sul do Chile, conheci ambos os extremos: Grandes empresas japonesas, canadenses, escandinavas, neo-zelandesas e outras que compram, a preços ridículos - 5, l0, 25 dólares o hectare - centenas de milhares de hectares do que sobra das magníficas florestas temperadas úmidas, fazem corte raso, levam ao picador até árvores de novecentos anos, transportam os cavacos ao Japão em grandes tanqueiros para fazer celulose e papel. Conheci governantes que acham isto muito lindo, consideram "progresso'', "desenvolvimento". Tive, também, a grande satisfação, e desespero, de conhecer um empresário americano que gasta sua imensa fortuna pessoal em comprar o que consegue, para, em fundação chilena, proteger estes bosques contra a sanha devastadora. Desespero, por quê? Os mesmos governantes que aplaudem a devastação, combatem este senhor com todos os meios, inclusive vilipêndio do mais baixo calibre. Acham que está trancando o progresso.

4) É sabido que o movimento ambientalista de certa forma perdeu força desde que surgiram leis e políticos e empresários assumiram a bandeira verde. Na sua opinião, qual é o caminho mais eficiente a ser trilhado pelos ambientalistas?

Se é verdade que o movimento ambientalista perdeu força, é porque sua maior parte está trancada na fase dois, na fase do confronto. Assim, os políticos cínicos lhes cortam as asas. Como entre eles são muito poucos os que têm soluções a oferecer aos empresários, também estes perdem o respeito. O movimento ambiental, se quiser reconquistar força, terá que trazer soluções a nível científico e técnico e terá que iniciar a discussão filosófica.

5) Qual é o principal inimigo do meio-ambiente hoje? Por quê?

Temos que nos perguntar, por que nossa atual civilização é tão destrutiva? Uma vez, ainda no governo, em discussão com poderosos - governantes, militares, empresários - me confrontaram com um grande mapa da Amazônia. No mapa havia muitas manchas e manchinhas verdes. Me diziam: - que querem vocês ecologistas? Estamos dando-lhes todas estas reservas biológicas, parques naturais, bancos genéticos, reservas indígenas, reservas extrativistas. Respondi: - Se aceitamos que esta é a solução, estamos aceitando que tudo o que neste mapa está em branco e são mais de 95%, poderá ser por vocês consumido. As manchas verdes perecerão no holocausto climático que se seguirá! Ou chegamos a estilos de vida que sejam compatíveis com a Criação, com este maravilhoso processo criativo que nos deu origem, a fantástica Sinfonia da Evolução Orgânica, ou desapareceremos como civilização e, talvez, como espécie.

O "inimigo" somos nós, é nosso estilo de vida consumista, resultado de nossa cosmovisão antropocêntrica que nos faz ver este nosso planeta, o único planeta vivo que conhecemos - provavelmente nunca conheceremos de perto outra maravilha semelhante - como se fosse um mero almoxarifado de recursos gratuitos e ilimitados.

6) O Sr. acha que o mercado hoje é um aliado eficiente do meio-ambiente? Como o Sr. vê a ISO l4000 e os mecanismos que estão sendo criados no Brasil para facilitar financiamentos aos "ecologicamente corretos" e dificultar a vida dos "vilões"?

Achar que o mercado é aliado eficiente do meio-ambiente é falácia pueril. O mercado só leva a equilíbrios sociais e ecologicamente satisfatórios se for local, envolvente e não anônimo. A regionalização, e pior, a globalização que hoje se promove, levam a tremendas distorções e são a base do Neo-Colonialismo. A ISO l4000 não passa de esparadrapo num corpo todo dilacerado, mas não deixa de ser necessária.

7) Quais as principais distorções de uma visão excessivamente mercadológica e de uma visão excessivamente purista da questão ambiental?

Da maneira como hoje funciona, além de manipulado em favor dos grandes centros de poder, o mercado é cego onde mais deveria enxergar. Ele não vê a maior parte da Humanidade. O miserável tem enormes necessidades, mas não tem demanda, pois não tem dinheiro, por isso, as atuais formas de desenvolvimento tornam os ricos sempre mais ricos e os pobres sempre mais pobres. O mercado é cego diante das gerações futuras que são as que pagarão o preço maior de nossas atuais orgias. O mercado é mais cego ainda diante da Criação como um todo. Nossa atual visão antropocêntrica nos faz ver a totalidade do que não é humano como simples recurso ou mercadoria. Aquela devastação das florestas chilenas é resultado da maneira como funciona hoje o mercado. O absurdo é igual na Amazônia, no Cerrado, nas florestas boreais da América do Norte, na Escandinávia, na Sibéria, em todos os demais ecossistemas e nas últimas selvas do Planeta.

8) Qual é o papel que cabe hoje ao Estado na relação das empresas com o Meio-Ambiente? Onde ele peca e onde ele acerta?

O Estado deveria ter atitude exatamente contrária à que hoje tem. Deveria ditar paradigmas e condições ecológicas e sociais. Entretanto, hoje, os Estados competem entre eles pelos "favores" das grandes corporações transnacionais, que já são os verdadeiros donos do mundo. Haja vista a avidez com que o Governo do Estado do Rio Grande do Sul compete agora com outros Estados pela instalação da Mercedes Benz aqui.

9) O Sr. é muito criticado por alguns ambientalistas por ter trabalhado em conjunto com a Riocell, que seria uma empresa muito poluidora. O que o Sr. tem a dizer sobre essa relação com a Riocell?

Desde o começo da luta ambiental, em l970, sempre fui homem livre, profissional liberal autônomo, não tive medo de ninguém, mesmo nos anos mais dificeis - às vezes passava ano inteiro sem renda - e durante a Ditadura, sempre falei abertamente. Desde então, sempre ganhei a vida fazendo trabalhos nos quais acredito. Trabalhos que são revolucionários, inovadores, de cunho ecológico e social. É claro que muitos não entendem, especialmente aqueles que vivem do maniqueísmo ou nele procuram se destacar. É claro que os trabalhos que faço em minhas empresas de jardinagem, paisagismo e reciclagem de resíduos industriais, dentro do grande contexto em que vivemos são apenas remendos técnicos, mas são um passo indispensável e, automaticamente, levam a uma crescente conscientização ecológica entre os poderosos, que são os que terão que tomar as decisões que levarão às transformações necessárias para chegarmos a situações ecologicamente sustentáveis e humanamente desejáveis.

No caso Riocell, tenho grande orgulho do que venho fazendo com eles há mais de l0 anos. Esta empresa está hoje entre as mais limpas do mundo. Na parte industrial estão com pelo menos 98% de seu problema ambiental resolvido e trabalham febrilmente na solução do pouco que falta. O trabalho florestal desta empresa também é modelo para o mundo, está de tal maneira estruturado que perfeitamente preserva e promove biodiversidade. Desafio os que me criticam a que venham informar-se em profundidade do que estamos fazendo e que iniciem eles atividades semelhantes. É fácil criticar. Difícil é fazer.

Aliás, não é somente com a Riocell que tenho colaboração criativa e altamente satisfatória em termos éticos. Já trabalhamos com muitas empresas e cada vez mais nos solicitam nos mais diversos ramos de indústria. O grande e muitas vezes insuperável freio para a ampliação deste tipo de trabalho está na pobreza intelectual dos jovens que saem de nossas universidades. Precisamos de profissionais com amplo horizonte em ciências naturais, em tecnologia, com motivação ética, que saibam pensar coerentemente e expressar-se de maneira sucinta, elegante e clara.Que fazer com jovens que se apresentam como engenheiros químicos e que não conhecem os princípios mais básicos da química, com jovens agrônomos que só conhecem receita de aplicações de venenos, etc...etc...?

Mas, quero deixar claro que, além de minha atividade prática em minhas empresas e na Fundação Gaia, que consome todos os meus lucros e que promove, entre outras coisas, uma agricultura regenerativa e socialmente justa, a minha preocupação básica é de natureza filosófica, é contribuir à necessária revolução ética, a uma nova visão holística, não antropocêntrica, uma atitude de integração e de reverência diante da Criação, sem a qual não haverá possibilidade de sobrevivência de uma vida civilizada. Nesta atividade dedico quase a metade de meu tempo viajando pelos cinco continentes. Estou chegando aos 70 anos, não mais posso perder tempo, tenho que dedicar-me intensivamente àquilo que mais contribui às mudanças necessárias.

 

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