PERNICIOSA CEGUEIRA CULTURAL
José A. Lutzenberger
07.11.1997

Para entender as causas profundas da brutalidade da devastação da Natureza em nosso país precisamos dar-nos conta de certos aspectos psicológicos que, por mais generalizados que sejam, praticamente não são confrontados, discutidos e combatidos. Para quem tem visão e sensibilidade naturalista biológico-ecológica é doloroso observar os fatos, mais doloroso ainda constatar quanta gente, especialmente entre os que têm poder para promover mudanças, é incapaz de enxergar e de sentir revolta, muito menos de agir. O esquema educativo nos três níveis escolares continua preparando gente alienada diante da Natureza e os meios de comunicação, especialmente a televisão, que são hoje os verdadeiros educadores (ou deseducadores?) praticamente em nada contribuem para a necessária reeducação.

De um ano para cá tenho estado regularmente na Amazônia, que, de viagens e trabalhos anteriores, conheço há um quarto de século. Em minha já longa vida - são setenta e um anos - conheci e observei de perto mais de cinqüenta países. Em nenhuma outra região do mundo a alienação a que me refiro se mostra tão intensa e feroz.

Quem sai do terminal do aeroporto de Manaus e caminha para o estacionamento atravessa um ajardinamento público. Seu conceito e acabamento testemunham esta alienação. Ela merece ser qualificada de doença mental contagiosa, digo contagiosa porque continua alastrando-se.

Estamos em pleno coração da maior floresta tropical úmida do Mundo, o mais complexo, precioso e vulnerável bioma (superecossistema) do Planeta. No Estado do Amazonas ele ainda está mais de noventa por cento intato. A maioria dos turistas que aqui vem, vem justamente para vê-lo. Entretanto, neste jardim, absolutamente nada, nada mesmo, lembra a Amazônia. Nem vestígio sequer da gostosa e fresca sombra do bosque tropical. Tudo é exposição direta ao causticante sol equatorial. A não ser à noite, ninguém escolherá este lugar para descansar em banco ao ar livre. Nos estreitos canteiros emoldurados de cimento todas as plantas são exóticas. São tropicais, é verdade, mas todas são de outros continentes, Ásia, Oceania, África. Existe ali um lago. Ele tem formas geométricas retas e angulosas, também emoldurado em concreto. As paredes verticais lisas têm altura suficiente para que um sapo, uma rã, uma cobra que porventura procurarem esta água, se entrarem, não mais poderão sair. Acabarão ali morrendo e apodrecendo. A água é freqüentemente trocada, o fundo e as paredes são escovados como se fosse uma banheira. Não se permite a formação de um lodo natural no fundo nem que cresçam plantas aquáticas submersas ou flutuantes, tão comuns, belas e diversificadas na Amazônia. Sempre que ali passo, a água se apresenta verde como sopa de ervilha, sem transparência, eutroficada, isto é, desequilibrada por excesso de nutrientes. A última vez que atravessei a ponte que corta o lago, ali estava um funcionário alimentando peixes. Calculam os zoólogos que o mais potente sistema fluvial da Terra abriga bastante mais que duas mil espécies de peixes. Que espécies estava ele alimentando? Eram tilápias africanas e carpas chinesas! Com quê? Com alimento peletizado para cachorro produzido no Rio Grande do Sul...

Este exemplo e outros parecidos são apenas os produtos mais amenos do estado de espírito predominante. Mas tudo o que hoje se faz na Amazônia em nome de "progresso" e "desenvolvimento" é imposição cega e brutal sobre o ecossistema local que, preferivelmente, é completamente eliminado.

Haja vista como são construídas as estradas. A terraplenagem não poderia ser mais absurda e agressiva. Os engenheiros que, suponho, por total falta de sensibilidade ambiental, deixam os capatazes trabalharem sem orientação, desconhecem a prática, comum em qualquer país sério, que consiste em separar inicialmente a capa vegetal do solo para reaplicá-la sobre a forma final, facilitando assim o recultivo de uma cobertura vegetal. O que se vê são gigantescas e gritantes feridas na paisagem, sem nenhuma consideração estética nem respeito pelas formações geológicas; complexos vegetais nem falar. Mesmo em substrato arenoso ou de argila fofa, são cortados taludes quase verticais que logo desmoronam. Aparecem vossorocas profundas que crescem rapidamente e chegam muitas vezes a ameaçar o leito da própria estrada, o que provoca novos trabalhos, igualmente agressivos. Em alguns lugares formam-se assim paisagens com formas deveras bizarras: agudas línguas verticais, pontudas como pontas de lança, pirâmides ou cones e gigantescas lâminas de facas bem afiadas, lembrando certas formações em desertos de parques naturais, que são famosos justamente por estas formações. Só que lá são o resultado de paciente erosão geológica em centenas de milhares de anos, aqui são atestado de visão técnica reducionista, descalabro momentâneo que leva a sempre mais estragos, entre outros, o assoreamento do igarapé à jusante.

Nos raros casos em que há tentativa de fixar os taludes com capa vegetal, verifica-se insistência em gramíneas que ali não têm futuro mas, quando a Natureza luta para fechar as feridas e consegue estabelecer complexos herbáceos e arbustivos, estes são logo combatidos ou queimados. Quando as estradas cortam os igarapés, a drenagem costuma ser insuficiente. A montante, o igarapé se transforma em lago, cobrindo e matando a vegetação típica, inclusive a palmeira buriti, uma das mais lindas palmeiras que conheço. Sobram os troncos mortos, tristemente emergindo da água parada. As estradas BR 174 e a AM 010 a cada quilômetro de sua extensão ilustram estas atitudes.

Não somente ao longo das estradas que levam ao interior - ainda bem que são poucas - mas em plena cidade, especialmente nos novos troncos, a filosofia é sempre a mesma, a terraplenagem não poderia ser mais agressiva. Os novos loteamentos e bairros industriais começam sempre com terraplenagem total que não deixa vestígio de verde. Custo a entender como conseguem as pessoas motivar-se a comprar terreno em meio a estes desertos lunares.

Voltando às estradas, além das feridas que elas próprias propiciam, a paisagem geral que elas, infelizmente, tornaram acessível, sem que se verifique preocupação ou ação oficial para disciplinar a ocupação, sofre logo violento processo de degradação, muitas vezes irreversível. O mais incrível é ver como até os sítios de lazer, alguns dos quais em suas placas no portal de entrada se dizem "sítio ecológico", a ocupação começa invariavelmente pela devastação total. O que havia de floresta e todos os complexos de vegetação secundária é impiedosamente derrubado e queimado. Surgem jardins perfeitamente artificiais com canteiros, gramados e caminhos em formas geométricas, árvores plantadas em formação de pelotão militar, troncos caiados de branco. O manejo do solo é esterilizante. Não toleram folha seca no chão. Estas e toda matéria orgânica morta, galharia, palha, pequenos e grandes troncos são juntados e queimados, muitas vezes debaixo de árvores plantadas e já bem desenvolvidas, inclusive frutíferas, que acabam morrendo. Ao longo das citadas estradas pode se ver muitos lindos jambos com sua forma cônica e folhagem densa parcialmente ou inteiramente queimados. Ali estão, mortos, de pé. Falta vergonha até para retirá-los, tristes testemunhos que são da insensatez imperante.

É difícil, para mim, entender como pessoas da cidade, que durante a semana sofrem a inclemência do mar de concreto, queiram passar seu fim-de-semana em ambiente tão devastado, igualmente inclemente e sem sombra, a não ser sombras artificiais de telha corrugada, de zinco ou amianto, que nas horas de sol são verdadeiros fornos solares que irradiam calor sobre quem debaixo delas se abriga. Após um almoço em lugar assim a gente levanta banhado em suor. Eliminam-se as agradáveis sombras naturais gratuitas para fazer sombra artificial dura e cara. Mas os jardins que se podem observar na cidade raras vezes oferecem sombra natural. Costumam estar cercados de altos muros de alvenaria, os canteiros são vestigiais, com plantas quase sempre exóticas e de pouca altura. O chão está quase completamente pavimentado. Como pode uma criança, que se cria em ambiente assim, aprender a conhecer e sentir as maravilhas de um solo vivo? Um solo como a Natureza costuma fazer e teima em refazer, por lento que seja o processo, cada vez que nós, humanos, o destruímos.

Felizmente, o Estado do Amazonas sofreu pouco a praga das grandes derrubadas para fazendas de gado, a coisa mais absurda que se pode fazer na Amazônia. Assim mesmo, ao longo das estradas, que tive o desprazer de conhecer, pode se ver alguns dos chamados pastos. O aspecto é chocante. Quando não predominam troncos e galharia carbonizada a vegetação que consegue se restabelecer é praticamente sem valor para o gado. A erosão é violenta e na volta dos piquetes prossegue a devastação no que sobra de bosque.

Tive oportunidade de conhecer de perto um assentamento de pequenos agricultores e de conversar intensivamente com o chefe da cooperativa. Eles haviam lutado muito para conquistar o direito à terra. Pretendiam sobreviver com fruticultura tropical, plantando mamão, manga, abacate, jambo, cacau, café, acerola, cupuaçu, abacaxi, goiaba, guaraná, cajú, maracujá e cítricas e até pupunha e outras palmeiras, criar algumas galinhas e porcos, fazer piscicultura. Intenção certa e mercado certo na metrópole próxima. A agricultura certa para a região só pode ser a permacultura com cultivos arbóreos perenes consorciados, de preferência sombreados, como no passado se fazia com café e cacau.

Mas a realidade é triste, muito triste, é desesperadora. Os colonos estão afetados da mesma doença mental - ojeriza de toda matéria orgânica e raiva de toda forma de "mato", ou seja toda forma de vegetação espontânea. Os cultivos estão todos doentes, deficientes, fracos, improdutivos. Como poderia ser diferente se eles mantêm o solo absolutamente nu, exposto ao sol causticante e à erosão? De tanto juntar tudo o que é palha, folha seca e galharia morta, e com ajuda da erosão, muitas de suas árvores estão com suas raízes expostas, outras estão parcialmente ou totalmente mortas pela queima deste material debaixo delas, como relatei acima para os sítios de lazer.

Interessante é notar a seletividade da ojeriza. Se, por um lado, matéria orgânica natural parece que dói na vista deles, por outro, predomina cegueira perfeita diante de lixo plástico, papel, tecidos, entulhos, sucata. Este tipo de material está espalhado, amontoado ou voa por toda a parte, inclusive junto às moradias e mesmo junto ao galpão de reuniões da cooperativa, sem que ninguém se preocupe.

Se não houver, rapidamente, reeducação destes pobres colonos para ensinar-lhes o valor da matéria orgânica e como preservar e estimular a vida do solo, este tipo de assentamento não terá futuro. A produtividade atual é mínima e decrescente, não é suficiente nem para consumo próprio - umas poucas mangas do tamanho de ovo de galinha mal bastam para sobremesa. Por enquanto os colonos sobrevivem com ajuda eleitoreira do governo - uma pequena mesada e comida. Este tipo de situação e outras parecidas se repetem aos milhares em todo o Brasil. Às vezes tenho a impressão de que certos setores de governo e da tecnocracia ou o poder dos grandes fazendeiros querem que assim seja, querem ver o fracasso destes assentamentos.

Onde estiveram durante todos estes anos os órgãos de pesquisa e extensão agrícola, as secretarias de agricultura nos estados e municípios, as escolas de agronomia? E o INCRA que, isto sim, sabe promover devastação em grande escala, como fez em Rondônia, que ainda aceita derrubada como benfeitoria para efeitos de documentação de posse ou propriedade? Muito fácil e barata teria sido a reorientação. Não precisamos de pesquisa nova, nem de grandes projetos com grandes verbas. Os pesquisadores, os extensionistas, os agrônomos regionais do esquema estatal têm salários, veículos, diária para viagem, só faltam as idéias e a iniciativa individual. Falta também a capacidade de observação e de revoltar-se diante dos descalabros que estão à vista de todos que quiserem ver.

A prova mais chocante da insustentabilidade da situação no assentamento, que tive a tristeza de ver, foi quando me mostraram seu álbum de fotos. Havia uma foto com imagem comovente: a escola. Umas duas dúzias de crianças sentadas em bancos primitivos em torno da professora. A foto tinha uns três anos, as crianças estavam com entre dez a doze. Comentário: "Todas já se foram embora, para a cidade, não ficou uma com a gente. Aqui não temos condição de dar futuro para elas". Mas então, que civilização é esta na qual não mais vale a pena ter filhos? E para isso estamos aniquilando a magnífica floresta Amazônica e tantos outros ecossistemas naturais no Brasil!

Os absurdos até aqui relatados, que são os que ainda predominam no Estado do Amazonas, são coisa pequena diante do que acontece no resto da "Amazônia legal", no Maranhão, Pará, Amapá, Roraima, Rondônia, Acre, assim como no Mato Grosso e Tocantins; que acontece em toda a Mata Atlântica, no Cerrado, Agreste, Caatinga e Pantanal, nas lindas praias de Sta. Catarina e enfim toda a costa brasileira. Em todo o território nacional, em todos os seus ecossistemas avança a devastação. Sendo que em toda a parte predomina o mesmo estado de espírito, é fácil imaginar-se o que acontece nas grandes fazendas de gado, que derrubam e queimam enormes extensões de floresta prístina para fazer pastos de produtividade ridiculamente baixa e que não são sustentáveis; nas grandes barragens, na mineração, na grande lavoura no Cerrado, na exploração madeireira, na pesca, tanto no mar como nos rios; a demolição dos arrecifes de coral, etc., etc.

A Eco' 92 no Rio tinha como lema básico o "desenvolvimento sustentável". Continuam os políticos a fazer sua demagogia en cima deste conceito, mas é quase impossível encontrar um político, um administrador público, um tecnocrata que saiba o que isto significa. Se realmente quisermos chegar à sustentabilidade da Civilização humana neste Planeta não basta repensar nossos postulados básicos no atual pensamento econômico e no desenvolvimento de tecnologia, teremos que ir muito além, ou seja, teremos que redefinir "progresso", teremos que repensar nossa visão do Mundo.

A própria revista TIME, uma revista que não costuma questionar a visão e os alvos da tecnocracia global, em seu recente número especial "Our Precious Planet", Nosso Precioso Planeta (Novembro 1997) em que prevê graves calamidades em conseqüência da atual agressividade ambiental da cultura industrial global com seu consumismo desenfreado, cita Stephen Jay Gould quando ele diz que para sobreviver, a Humanidade precisa chegar a uma renovada apreciação da Natureza e que "não podemos ganhar esta batalha se não conseguirmos estabelecer um laço emocional entre nós e a Natureza". O problema é de ordem espiritual. TIME, na última parte do número especial termina dizendo "a não ser que consigamos seguir o conselho de Gould, talvez não consigamos sobreviver".

Este trabalho é um apelo desesperado a todo o complexo educacional da sociedade: pais, jardins de infância, primário, secundário, ensino superior, meios de comunicação, Ministério e Secretarias de Educação, vamos, todos, iniciar já o esforço necessário para a necessária reeducação. Caso contrário, em futuro bem mais próximo que muitos pensam, nossos filhos estarão nos amaldiçoando.

 

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