Lutz explica o equilíbrio entre campo e mata no Pampa

 

No debate sobre o Bioma Pampa, Cláudia Dreier apresentou um texto de Lutzenberger sobre esse tema, que foi escrito em 25 de junho de 1997. Ela ocupou o lugar do professor Carlos Nabinger o qual não pode comparecer por motivo de doença.

 

Leia abaixo a íntegra do artigo apresentado em 17 de dezembro de 2014, no auditório 2 da FABICO, em Porto Alegre. O mesmo encontra-se no saite da Fundação Gaia em http://www.fgaia.org.br/texts/t-pref.html

 

PREFÁCIO PARA "ÍNDICES DE LOTAÇÃO PECUÁRIA PARA O RIO GRANDE DO SUL"  FARSUL - 25-06-97.

 

Este livro procura mostrar o absurdo de um enfoque reducionista que estabelece parâmetros fixos de ocupação para os campos do Pampa gaúcho, sem levar em conta uma série de fatores importantes que variam de lugar para lugar, de ecossistema para ecossistema e de fazenda para fazenda. Quero aproveitar para levantar aspectos igualmente, se não mais importantes que a simples sustentabilidade da produção de carne, aspectos que poucos levantam, mas que têm a ver com a sobrevivência de nossa espécie e de todas as demais.

 

No encontro do Príncipe Charles com Collor, logo no início de seu fracassado governo, no iate real, subindo o rio Amazonas, após a janta, me coube fazer uma alocução. Desenvolvi o seguinte pensamento:

 

Em nosso Centro Cultural e Agrícola, no Rincão Gaia, da Fundação Gaia, em pleno Pampa, quando, à noite, do alto de nossa torre, depósito de água e mirador, vislumbro 360º de horizonte, alcançando 20, 30 e mesmo 40 km conforme a direção que se olha, mal consigo ver uma dúzia de luzes. Fosse um lugar na Europa Central, seria impossível contar as dezenas ou mesmo centenas de milhares de luzes. Apareceriam dúzias de aldeias e uma ou outra cidade maior no horizonte. A doutrina econômica predominante vê atraso aqui, desenvolvimento lá. Ora, desejável é a nossa imensidão de espaço, não o aperto deles. Não consigo invejar a situação alemã, muito menos a holandesa. Lá eles têm vinte por cento do território nacional coberto de construções ou pavimentos, com o restante ocupado por lavouras, pastos artificiais, cultivos florestais também artificiais, tudo explorado com a máxima eficiência até o último metro quadrado. A paisagem do Pampa em todas as suas formas, desde a Patagônia, Uruguai, Entre Rios, Corrientes, Misiones, atravessando a Campanha, a Serra do Sudeste, a Depressão Central até os Campos de Cima da Serra, é um dos grandes biomas do Planeta. Ecologicamente corresponde à Prairie norte-americana. Biomas são os superecossistemas, como os oceanos, águas doces, florestas tropicais úmidas ou secas, cerrados e savanas, florestas temperadas e taiga, floresta atlântica, caatinga, desertos, tundras e outros. Ecologicamente, o Pampa parece um paradoxo. O clima é de floresta subtropical úmida, mas sua paisagem é predominantemente aberta. Em toda a parte pode observar-se o choque entre floresta e campo. Os bosques ciliares ao longo dos cursos d'água, nas várzeas e vertentes e, em alguns casos, em encostas íngremes, têm limites bem definidos com os pastos naturais. Só em algumas regiões topograficamente mais complexas como, p. ex. Santana do Livramento ou na serra do Sudeste temos paisagens tipo parque com vegetação arbustiva e arbórea mais esparsa. Todas as paisagens do Pampa são de beleza e valor ecológico peculiar. Aqui no Rincão Gaia, onde agora me encontro escrevendo, diante das lindas colinas ondulantes, muitas vezes me perguntam quando foi desflorestada esta paisagem. A surpresa, especialmente entre estrangeiros e forasteiros, costuma ser grande quando digo que nunca, que hoje se veem mais árvores que no estado original. Mas se o clima é de floresta subtropical úmida e os solos são propícios ao crescimento de árvores como atestam as grandes plantações de eucalipto, acácia, pinus, como se explicam os pastos naturais?

 

Temos aqui o choque de dois ecossistemas em clímax. Clímax é o estado de equilíbrio final de um ecossistema maduro, uma situação além da qual não mais se altera, a não ser através dos milhões de anos com a evolução das espécies e da evolução geológica e climática. Os nossos campos abertos são um clímax. Se observarmos a diversidade de espécies nos ecossistemas, veremos que nos pastos, entre plantas herbáceas e gramíneas, o número vai muito além de mil. Um pasto europeu não costuma ter mais que algumas poucas dúzias. Os bosques ciliares do Pampa, outro clímax, são igualmente ricos em espécies, centenas, comparadas com as poucas dúzias de um bosque europeu. Eles tendem a alastrar-se. Qual, então, a explicação do convívio direto destes dois sistemas?

 

Uns onze mil anos atrás houve aqui uma mudança importante no clima. Foi na época do recuo da grande glaciação no hemisferio norte. O Planeta todo ficou mais quente. O cinturão tropical se alargou, empurrando para o norte, respectivamente para o sul, os cinturões subtropicais, temperados, árticos e polares. Antes desta mudança, o clima do Rio Grande do Sul era bem mais frio e mais seco, um clima de estepe, algo parecido com o clima do Arizona/Colorado. De lá para cá, os onze milênios não foram suficientes para que a floresta conseguisse conquistar toda a região, ela só conseguiu cobrir os flancos da Serra Geral, e grande parte do vale do Uruguai. No Pampa, ela avançou pelos cursos d'água e cobriu muitas várzeas. Talvez tivesse conseguido conquistar tudo, não fosse um evento importante. Foi na época da mudança de clima que aqui chegaram os antecessores do indio. Os pastos devem ter tido aspecto bem diferente. Não havia reses. Os herbívoros nativos, entre eles o próprio megatério, uma preguiça terrestre maior que um elefante, certamente não tinham a densidade de peso por hectare que costumam ter os rebanhos de hoje e, sem cercas, faziam migração, como os herbívoros da savana africana. O pasto era alto, como se pode ver nas faixas de domínio de nossas estradas. Provavelmente o índio, ainda não adequado à região, caçava com fogo. O bosque, à medida que avançava conquistando terreno, também recuava pelo fogo. Hoje, na situação atual, com o gado, estabeleceu-se um equilíbrio entre bosque e pasto nativo.

 

Existe, inclusive, um perigo que muitos fazendeiros ignoram. Quando o número de reses que se refugiam nas matas ciliares é muito elevado, os animais acabam destruindo todo o sub-bosque, o que inclui o rejuvenescimento, ou seja, as mudas novas das árvores. Quando este processo não é interrompido, como pude observar em alguns raros casos, o bosque está condenado. O efeito é como se numa população humana morressem todos os bebês... Também já vi estragos muito graves de erosão causada dentro do bosque por excesso de gado quando o terreno é íngreme. Felizmente, na grande maioria das fazendas estes bosques estão bem conservados.

 

Em sua forma atual o Pampa é uma das raras paisagens preciosas do Planeta em que a exploração humana se encontra em relativa harmonia com o ecossistema. Ao contrário dos demais esquemas de exploração da Natureza que predominam em nosso Estado, a fazenda de pecuária extensiva é um esquema de exploração da Natureza que concorda com as exigências da Conferencia Rio '92, ela é permanentemente sustentável.

 

A grande Floresta de Araucária ao nordeste do Estado, uma das mais majestosas da Terra, foi totalmente devastada pela exploração imediatista. Nossa grande mina de cobre acaba de fechar por esgotamento de minério e nossa agricultura ainda tem longo caminho pela frente para tornar-se sustentável e não poluente com os venenos agrícolas. Mas a quase totalidade dos fazendeiros sabe que só podem viver do desfrute de seu rebanho, que só podem vender para abate por volta de um animal adulto em cada dez por ano. Tivesse o madeireiro aprendido esta lição, não consumido, mas desfrutando o bosque, a majestade da Floresta de Araucária continuaria de pé. Recém nestes últimos anos, alguns dos ex-madeireiros passaram a ser reflorestadores. Nas grandes monoculturas por eles mesmo plantadas, aí sim, eles exploram de maneira sustentável e evitam desperdício.

 

Além da grande diversidade biológica no campo, nos bosques e capões, o Pampa abriga toda uma flora peculiar, muito preciosa e muito ameaçada. Quando do clima anterior, seco e frio, que durou muitos milhões de anos, evoluíram aqui muitas plantas xerófilas - plantas de clima seco ou de deserto. O Rio Grande e as demais regiões de Pampa são um dos grandes centros de formação de espécies da família cactáceas e das bromeliáceas, assim como das orquídeas. As cactáceas conseguem hoje sobreviver nos afloramentos de rocha - lageados, chapadões, falésias e matacões. Algumas são epífitas, crescem sobre árvores como as orquídeas, sem serem parasitas destas. Muitas destas plantas são muito raras. Sua ocorrência sendo limitada aos espaços rochosos de pouca extensão, as populações são pequenas e o isolamento dos habitats uns dos outros faz com que muitas destas plantas sejam endêmicas. Uma espécie endêmica é uma espécie que ocorre em uma área limitada e em nenhum outro lugar do mundo. Assim existem em nosso Estado cactáceas, orquídeas e bromélias que ocupam áreas de poucos metros quadrados, ou poucos hectares apenas. Quando uma população destas é destruida pelo fogo, pelo excesso de pastoreio, pela terraplanagem ou as plantas são levadas por colecionadores inescrupulosos, a espécie desaparece para sempre - é a extinção. Um dos trabalhos de nossa Fundação consiste em descobrir os locais e alertar os fazendeiros para que os protejam.

 

Outro aspecto importante é a fauna. O Pampa é ainda uma das regiões do Mundo onde, apesar de todos os estragos que já houve, a fauna está mais intacta, especialmente a fauna avícola. Com um pouco de cuidado e conscientização poderá facilmente haver recuperação significativa. Fauna e pecuária se complementam muito bem, desde que não haja exagero no pisoteio, ou seja, excesso de lotação. Mas o excesso de lotação por si só é prejudicial ao fazendeiro, porque depreda o campo e diminui a produtividade. Alguns de nossos campos, especialmente os que são de solo arenoso, como na região de Alegrete, são extremamente vulneráveis ao excesso de peso, à agressão mecânica, aração para lavoura, nem falar. Todos conhecemos os desertos de dunas que já se formaram.

 

Se conseguirmos nova atitude por parte do IBAMA e algumas pequenas alterações nas leis ambientais, muitas fazendas poderiam explorar animais silvestres em esquema sustentável (veja Pecuária Natural, José A. Lutzenberger, 1987) como ocorre em muitas fazendas, na África, no Canadá e mesmo na Escócia. Na Alemanha, onde o controle da fauna é total, apesar da densidade populacional, da proximidade das cidades e aldeias umas das outras, mas onde cerca de 40% do território está coberto de florestas, é enorme a produção de carne de cervo, veado, javali, faisão e outros, a ponto de serem estas carnes oferecidas nos restaurantes e a caça constituir-se em evento cultural. Espero que num futuro próximo possamos chegar a uma maior proteção e aproveitamento da fauna.

 

Apesar de ser baixa, a produção sustentável de carne quando expressa em quilos por hectare, ela é uma produção real porque o gado transforma em alimento humano recursos que não nos são diretamente acessíveis. Nós humanos não comemos pasto, muito menos palha seca. Por isso, os modernos esquemas de "produção" com animais confinados, que mais merecem o nome de "campos de concentração" de animais, nada produzem, apenas transformam, mas com grande perda. Alimentar gado, galinhas e porcos com grãos é dar-lhes alimento subtraído ao consumo humano, é agravar o problema da fome.

 

Do ponto de vista ecológico, o fazendeiro do Pampa já é e pode tornar-se ainda mais preservador de paisagens, de ecossistemas e de diversidade biológica e cultural. A linda cultura gaúcha também merece proteção, não podemos permitir que desapareça.

 

À medida em que ele protege sua paisagem, a fauna e a flora, o fazendeiro merece reconhecimento oficial neste sentido, não necessariamente subsídios, mas isenção de impostos nas áreas que o INCRA gosta de chamar improdutivas, os bosques, complexos florísticos raros, pântanos, assim como pela preservação da fauna. O Pampa merece ser declarado "Reserva da Biosfera", ele é tão precioso quanto o Pantanal, apenas diferente. Não procede a aplicação de critérios de produtividade medidos apenas em quilos, ou faturamento por hectare.

 

Quanto à reforma agrária, não é simplesmente expropriando propriedades para dividi-las entre os sem-terra, sem dar-lhes depois o mínimo apoio, quando, no mesmo momento, a política econômica marginaliza sempre mais gente, milhões todos os anos. A globalização vai acelerar ainda mais este processo. O que precisamos é uma nova política agrícola, uma política que protege e fomenta a propriedade familiar, seja ela de camponês ou de fazendeiro. E não devemos confundir o fazendeiro do Pampa com aqueles grandes fazendeiros do Brasil Central, Nordeste e Norte que tem as mãos ensanguentadas e que fazem gigantesca e absurda devastação ambiental. O fazendeiro gaúcho é uma cultura que se desenvolveu e cresceu com a paisagem, não contra ela!

 

Fotos: Edi Fonseca. Edição de imagens e textos: Cláudia Dreier comunicacao@fgaia.org.br

 

 
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